Dalton Trevisan não se deixava ser fotografado ou entrevistado e não saía de casa para receber prêmios. Dizia ser tímido, reservado, avesso a homenagens, e pronto —as explicações dele para negar todos os convites geralmente paravam por aí. Mas recluso não é uma palavra fiel ao escritor curitibano, morto aos 99 anos nesta segunda-feira (9).
Pedestre com aversão a carro, trânsito e buzina, Dalton escolheu o centro da capital paranaense para morar, e ali andou por tudo, por décadas, vendo e ouvindo a cidade, que se tornou também uma personagem na sua obra.
“Ele tinha uma relação ambígua com Curitiba, era ‘província, cárcere e lar’. Então tinha uma crítica, uma ironia sobre a cidade. Mas Curitiba é uma grande personagem na obra dele. Ele fala da sua vila para falar do mundo, do que é universal”, diz Fabiana Faversani, amiga de Dalton e agente literária, responsável nos últimos 20 anos por organizar a obra dele.
Dalton sempre circulou bastante pela região central, incorporando locais à rotina, como a Livraria do Chain, onde recebia a correspondência, antes do surgimento da internet, o restaurante vegetariano em frente ao shopping Itália, fechado durante a pandemia, e um café no Mercado Municipal, por exemplo.
O diretor teatral João Luiz Fiani, que também foi amigo de Dalton, lembra ainda da coalhada e do “pão integral com queijo e salaminho” da confeitaria Schaffer, pedido clássico de Dalton. O local também não existe mais.
“Teve uma época em que tomávamos café toda terça-feira, ali na Rua das Flores. Ele vivia o Centro da cidade, gostava de fazer tudo a pé”, iniciou Fiani. “Mas era uma figura que gostava do anonimato para se meter no meio da cidade, no meio das pessoas, e buscar os personagens deles”, explica ele.
“Por que ele era o vampiro de Curitiba? Por que ele queria ficar incógnito? Porque ele sentava e ficava ouvindo as histórias das pessoas. Para que ele pudesse se inspirar para escrever. Era um sugador de almas dos moradores da cidade”, diz o amigo.
Fabiana também rejeita o mito do sujeito recluso. “Ele sempre teve uma preocupação em se preservar como indivíduo, separado de autor de obra, separado da própria obra. Se tivesse um rosto conhecido, as pessoas contariam suas histórias a ele?”, diz ela.
“Ele queria continuar na posição de ouvinte, de observador. E ele era um doce, tinha um humor fabuloso, de fácil trato”, conta ela.
O jornalista Roberto Muggiati, que conviveu mais com Dalton em outra época, na década de 1950, também descreve um escritor que, embora reservado, mantinha-se dentro da vida urbana, como uma espécie de ponto de partida para sua produção.
“Ele era um escritor excepcional, com uma grande carga de poder literário, e gostava de saber as histórias e de tudo que estava acontecendo na cidade”, compara Muggiati, que conheceu Dalton quando trabalhava na Gazeta do Povo, na Praça Carlos Gomes, e o escritor às vezes aparecia por lá.
“Ele circulava pela redação para captar histórias. Ouvia as histórias e as transformava da maneira dele, claro. Ele tinha alma de repórter, mas filtrava isso no alambique literário dele para um vinho de alta qualidade, digamos assim”, conta ele.
E a transformação da cidade também está na obra de Dalton. “Naquela época Curitiba tinha 300 mil habitantes. A Grande Curitiba hoje chega a quase 3 milhões. Mas Dalton, ao longo do tempo, também foi atualizando nos seus contos a Curitiba que ele via, inclusive a chegada da violência, do crack”, observa Muggiati.
Nos últimos anos, a famosa “casa do Dalton” começou a ser alvo de assaltos mais frequentes. O imóvel é uma construção antiga da década de 1920, cravada em uma esquina, no encontro das ruas Ubaldino do Amaral e Amintas de Barros, no Alto da XV, um bairro central e de classe média.
Ele morou décadas ali, com as janelas quase coladas na rua e quase sempre fechadas. No fundo do terreno, um grande gramado, impossível de ver quando se passa na calçada. Em 2021, após um assalto mais violento, e com um acúmulo de problemas típicos de imóvel antigo, Dalton se mudou para um apartamento e a casa foi vendida.
“Começou a pandemia, o Centro ficou vazio, ele ganhou o Camões, o Machado de Assis, os valores dos prêmios foram amplamente noticiados, aí mostravam a casa de esquina, onde ele morava sozinho. Ele estava muito vulnerável”, conta Fabiana.
“Ele nunca tinha morado em apartamento e estava resistente, mas ele depois gostou, ficou bem. Era um apartamento antigo, com cômodos grandes, piso de taco, pé direito alto. Um imóvel antigo”, diz ela.
A nova moradia permaneceu central, na Alameda Dr. Muricy, perto da Biblioteca Pública do Paraná e da Praça Tiradentes, uma das regiões mais movimentadas de Curitiba. “Perto de personagens dele, da Cruz Machado”, lembra Fabiana.
Dalton morreu em casa. A amiga acompanhou de perto os últimos dias do escritor, ao lado de enfermeiros, cuidadores e de uma sobrinha dele.
“Ele fazia fisioterapia em casa, tinha mobilidade, andava com auxílio, mas andava. Lúcido, usava o computador, tinha rotina, era impressionante. A morte dele foi um processo muito digno, consciente”, conta ela.
Dalton deixou orientações sobre sua morte – não quis velório, optou pela cremação, por exemplo. E ainda em vida autorizou a doação do seu acervo pessoal para o Instituto Moreira Salles. Isso inclui a biblioteca pessoal, correspondências, diários, fotografias, documentos, títulos, prêmios.
“É um acervo grande, que retrata quase um século de literatura brasileira. Ele mandava muito carta. Estava isolado em Curitiba e tinha uma correspondência enorme com tradutores, críticos literários, escritores”, revela Fabiana.