Em ‘Cem Anos de Solidão’, Netflix mostra as nuances da Colômbia de hoje


Não, a série “Cem Anos de Solidão” não é melhor que o livro. O livro é muito superior. Se possível, leia cada capítulo escrito por Gabriel García Márquez do modo como foi concebido, armado e finalizado. Se trata de uma obra-prima e isso nunca vai mudar.

Uma adaptação audiovisual, porém, não é menos desafiadora. Toma liberdades, adapta o modo de falar e os trejeitos de cada um, porque lida com outra linguagem, nesse caso a da televisão. Assim, nos dá a chance de sentir a linguagem falada, nas distintas regiões das quais vem os personagens.

Nesse sentido, “Cem Anos de Solidão“, feita pela Netflix, é mais do que uma série. É uma superprodução que tenta dar vida à viagem mais incrível pela qual enveredou a cabeça de Gabo, o Gabriel García Márquez, e que vale ser lida, linha por linha.

Para ver a série, então, será preciso deixar o livro de lado. Estamos vivendo o sonho feito realidade de José Arcadio Buendía, atormentado por ter matado um homem em um duelo e que passa o resto de sua vida, atormentado pela ideia de que pode sofrer uma maldição, e, com sua mulher, dar à luz uma criança com o rabo de uma iguana.

Publicado em 1967, o romance conta a história dos Buendía, família condenada por uma força inexplicável a viver um século de solidão. Sucessivas gerações de homens e mulheres marcados por sinais trágicos fazem mover uma engrenagem de repetições de comportamentos obsessivos e desilusões. Tudo se passa na fictícia cidade Macondo, cuja história é pontuada por eventos fantásticos, visitas de ciganos e a ação corrosiva e quase imperceptível de insetos.

Macondo, na série, tem um tom distinto da mata que surge do livro. Enquanto na obra escrita, embrenhar-se nela é uma aventura mágica, a adaptação mostra um território cheio de suas dificuldades.

É aí que as sabedorias do guru intelectual e espiritual de José Arcadio Buendía, o mago Melquiades, indicam o caminho, abrindo possibilidades para aqueles que sequer conheciam o mar. Um encontro icônico, da Macondo de costas ao mar com a que viveria dele nos próximos anos.

“É preciso ter em mente antes de ler Macondo que se trata de um romance que gira em torno do Coronel Aureliano Buendía, que promoveu 32 revoluções armadas e perdeu todas.”

Na descrição que Gabriel García Márquez faz do protagonista de “Cem Anos de Solidão” estão ao mesmo tempo o humor funesto com que trata da impotência do homem e o tom de extrema naturalidade que usa para narrar fatos inverossímeis.

É possível interpretar o romance como uma metáfora do isolamento e da desesperança da América Latina. O pano de fundo é o dos sangrentos enfrentamentos entre conservadores e liberais, que cindiram a Colômbia a partir de meados do século 19, e que seguem como seu principal desafio ate os dias de hoje, quando nos deparamos com um país onde novamente é preciso ter passaportes para viajar pelo mundo.

Tamanha é a quantidade de novos personagens que fluem a partir da história central, que alguns preferem ler o livro desenhando uma árvore genealógica dos Buendía. Não se deve desprezar, porém, a sedutora alternativa de deixar-se confundir pelas caóticas ramificações da estirpe, que dão força à sensação de repetição e de catástrofe com que o romance está comprometido.

Minha dica é que sigam o mapa genealógico, mas também se deixem perder. Gabo era um mestre na províncias da costa e de La Guajira, mas se chateava com os “cachacos” (andinos). De certo modo não se conformava com que os puramente “cachacos” tinham tanta resistência a Jorge Eliécer Gaitán, líder trabalhista que distribuía dinheiro a seus militantes.

Eliécer Gaitán foi assassinado no meio da rua. Um líder popular que poderia ter transformado a Colômbia, mas que, em vez disso, causou o retorno definitivo de Gabo para La Guajira e para a costa. Para a sorte da literatura colombiana.



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