Flávio Cerqueira imortaliza os brasileiros do dia a dia em nobres esculturas de bronze


Um morador da periferia de Guarulhos e um menino que circula pela região são personagens importantes o suficiente para virarem imortais em esculturas de bronze. Detalhadas, as peças reproduzem os chinelos de dedo dos retratados, o drapeado das camisetas e a modelagem solta das calças.

Flávio Cerqueira, escultor de 41 anos com duas exposições em cartaz agora em São Paulo, uma no Centro Cultural Banco do Brasil e outra na galeria Simões de Assis, procura mostrar todos os tipos de brasileiros nas suas obras de apelo pop.

“Trago elementos do cotidiano, que é como vou usar uma técnica milenar, a escultura em bronze, na contemporaneidade. A estética é contemporânea —uma [sandália] Crocs, umas Havaianas, a camiseta e o boné, com que as pessoas se identificam”, diz ele.

O paulistano, nome central no panorama da arte brasileira hoje, fala rápido enquanto acompanha as horas finais da montagem de sua exposição no CCBB, que abre neste sábado (7) para o público.

Organizada pela historiadora e curadora Lilia Schwarcz, esta é a primeira grande mostra institucional de Cerqueira, e reúne 40 das 45 obras produzidas pelo artista nos seus 15 anos de carreira, quase todas vindas de sua própria coleção.

Seu trabalho foi impulsionado com a inclusão, há seis anos, da escultura “Amnésia” na mostra “Histórias Afro-atlânticas”, exposição blockbuster organizada pelo Masp, o Museu de Arte de São Paulo. A peça, que parece o instante congelado de uma cena, retrata um garoto negro derrubando sobre si uma lata de tinta branca, num ácido comentário sobre o racismo.

O fato de a imagem desta obra ter circulado bastante, atingindo mesmo quem não foi ao museu, fez com que o artista passasse a ser visto como alguém que trata de injustiças contra pessoas negras. Ele aborda isso em seu trabalho, mas, ao vermos o conjunto de sua produção, fica claro que esta é só uma parte de um todo.

“Faço mais uma imagem de um brasileiro do que de uma pessoa negra. O brasileiro pode ser qualquer um. Os trabalhos são em marrom, uma cor simbólica por conta da miscigenação”, afirma ele, ao justificar por que seus bronzes têm esta tonalidade como a predominante —o artista também pinta peças de branco, que passam a impressão de serem louças frágeis.

No CCBB estão também uma criança com um coelho e uma raposa no lugar das mãos, seus amigos imaginários, e um jovem que se questiona sobre a sua sexualidade ao segurar dois limões sicilianos em frente aos mamilos. Isso sem contar os personagens que voam em balões em direção ao céu.

Na galeria, o artista exibe um boné com a palavra “poder” na frente e reproduz as costas de uma pessoa, onde se lê “não estou no meu passado”. Ou seja, ele transita entre densidade e crítica social e trabalhos de teor leve ou introspectivo.

Cerqueira é um dos únicos artistas brasileiros de uma geração mais jovem que trabalha exclusivamente com escultura, à exceção de um punhado de pinturas que fez de seus familiares durante a pandemia, expostas no subsolo do CCBB.

Morador de uma periferia de Guarulhos durante a adolescência e em parte da vida adulta, o artista lembra quando entrou num museu pela primeira vez, com cerca de 20 anos, para ver uma exposição do francês Auguste Rodin, considerado o fundador da escultura moderna —aquele momento seria crucial, definidor de sua escolha profissional.

Na lida com o barro e a cera para confeccionar o molde das esculturas, foi desenvolvendo suas figuras de linguagem pop, com quem é fácil se identificar e às quais acrescentou elementos como balões, pequenos foguetes ou escritas com letra de pichação. Desta forma, Cerqueira tira a escultura, frequentemente empregada para imortalizar heróis ou conquistadores, de seu lugar de monumento.

Cerqueira afirma querer dessacralizar a ideia de que arte é para poucos, inacessível. “O que me fez fazer arte é me comunicar com as pessoas que não tem letramento acadêmico para ver arte”, ele diz. “Tento fazer uma síntese de assuntos bem complexos, como com o racismo estrutural no caso de ‘Amnésia’. Consigo que as pessoas entendam aquilo, e é o que considero um trabalho bem-sucedido.”



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