Han Kang invoca amor, trauma e coragem em seu discurso do Nobel


Han Kang, a ganhadora do Nobel de Literatura deste ano, é uma mulher de 54 anos leve, tímida e delicada. Ostenta aquilo que a imprensa —e somente a imprensa, pois jamais constou que alguém tenha se expressado dessa maneira na vida real— chama de “gestos econômicos”, a combinação, jamais calculada, entre recato e leveza. Nenhuma sombra de derramamento. Zero pose.

No último sábado, Kang adentrou pelo faustoso e afrancesado salão da sede da Fundação Nobel —que antigamente hospedou a Bolsa de Valores local—, dirigiu-se sem qualquer alarde ao púlpito e desfilou uma conferência em seu idioma natal.

Para a maioria de não falantes do coreano, à exceção de membros do corpo diplomático de Seul e jornalistas, a academia forneceu uma brochura em língua franca, o inglês. Mas quem foi esperto deixou a tradução para ler mais tarde.

O barato foi ouvir a suave e musical voz da autora de “A Vegetariana” ocupar o espaço e então imaginar como de fato soam seus livros –pequenas joias que misturam introspecção e traumas nacionais– ainda sem o contrabando essencial de outros idiomas.

O conteúdo, no entanto, era “suave” apenas na aparência. Tive o privilégio, na qualidade de seu editor brasileiro, de testemunhar esse momento em que Kang, orgulho absoluto do soft power sul-coreano (junto com o dorama e a garotada do k-pop), mas enfrentando alguma oposição em sua terra natal nas últimas semanas, abriu uma caixa de palavras para afirmar que a memória, o amor e as iniquidades do mundo nutrem sua própria ficção.

Han Kang é uma brava mulher de coragem. Foi ovacionada pela plateia de gente madura e enfatiotada formada por suecos, editores estrangeiros, a comitiva sul-coreana, acadêmicos. Aplausos para além dos regulamentares. O esperado para uma conferência a um só tempo tocante e indignada.

A “Nobel Lecture”, conferência que todo ganhador precisa apresentar, é de fato uma ocasião especial. Antes de todo rapapé do banquete real (lembremo-nos que a Suécia, tão assumidamente despojada em sua “quiet luxury“, ainda é uma monarquia, embora do tipo parlamentar), o autor ou autora distinguido pelo prêmio lê um texto em sua língua original.

Há um pouco de tudo, se você tiver paciência e inglês suficiente para ir ao site da Academia Sueca revisitar as conferências do passado. Brilho, banalidade, confissão, meus oito anos (“aurora da minha vida” etc).

Mas quando o autor ou autora pega na veia, o texto apresentado se torna uma profissão de fé na literatura. O discurso de Saul Bellow, ganhador em 1976, por exemplo, fala de Conrad, de Proust, aposta na criação de grandes personagens. Aqui, o pano de fundo é um debate com o “nouveau roman” francês, em voga na época, e que a cada semana decretava a morte da literatura, do autor, do personagem.

E, eu acrescentaria, se assim permitido, da própria fruição literária naqueles livros chatérrimos, com as exceções de praxe (Duras). Bellow cita nominalmente Robbe-Grillet. E em péssimos termos. Enfim, papo de gente grande.

Outro discurso notável é de Olga Tokarczuk. Este você pode ler na edição brasileira —da casa onde atuo— de “Escrever É Muito Perigoso“. O título é “O Narrador Sensível”, e nele a autora reflete sobretudo sobre a falta de comunicação nos dias que correm. É um petardo.

Fala do grau enciclopédico da cultura contemporânea, em que temos acesso a tudo mas cada vez nos compreendemos menos, escutamos menos, reconhecemos menos o outro. E sonha com uma história de entendimento universal, sem tribos, facções e desencontros.

Voltando a Kang. A solenidade no sábado se deu poucos dias depois que fileiras da direita coreana foram protestar diante da embaixada Sueca em Seul. Kang seria “comunista”, e portanto merecia ser coberta de opróbrio e tampouco mereceria a honraria máxima da literatura. A tentativa (malograda) de lei marcial na semana passada botou água na fervura de um cenário político já um tanto conturbado. Lá como aqui, a direita é um bisão hidrófobo. O mundo vai de mal a pior.

Esse pano de fundo parecia marcar presença em cada palavra da autora. Normal. Ao longo de sua obra ela investiga, de forma poética e brutal, alguns dos capítulos mais tenebrosos da Coreia no século 20.

Seu livro “Atos Humanos“, por exemplo. Trata da Revolta de Gwangju, em sua cidade-natal, quando civis se revoltaram contra a ditadura, pegando em armas e tomando o controle da cidade. A revolta foi brutalmente reprimida pelo exército. Deixou centenas de mortos, feridos e desaparecidos, em especial jovens e estudantes universitários.

Kang escreve esses livros sem um pingo de grandiloquência nem sentimentalismo. Mas não elide, contudo, a emoção. Esse equilíbrio delicado, força-motriz de sua ficção, também compareceu nas palavras de sua conferência de sábado. É um discurso que começa e termina com o amor. No meio disso, a criação literária, a observação de que o mundo é terrível mas também pode ser belo. Resumo de maneira ligeira. É preciso ler nas palavras de Kang.

A “Nobel Lecture” começa pomposa —um violoncelista da orquestra local toca algumas peças de Bach. Depois um membro da Academia Sueca faz um breve discurso num inglês de pedigree que evoca os bancos de Cambridge ou Oxford. E então a autora assume o púlpito.

Depois dela, tal qual os lançamentos que viraram moda há alguns anos nas livrarias, duas atrizes leem trechos de seus livros em sueco e inglês. A função toda leva cerca de uma hora. E termina —graças aos deuses da literatura— da maneira mais prosaica e por isso mesmo mais reconfortante possível: parte da audiência cerca a autora tão logo ela desce do púlpito para as selfies e os autógrafos habituais. É isso que importa, afinal.



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