Orhan Pamuk sugere em livro que a literatura é a melhor historiadora


“Noites de Peste”, o novo romance de Orhan Pamuk, escritor turco vencedor do Nobel de Literatura de 2006, é um texto em várias camadas, misturando gêneros distintos, num estilo leve e bem-humorado, embora nem sempre envolvente.

Enquadrando toda a narração desse calhamaço de quase 700 páginas, há um apanhado descritivo dos últimos 20 anos do Império Otomano, que terminou ao fim da Primeira Guerra Mundial, mas de modo a se concentrar no relato do primeiro ano do século 20.

Nesse quadro, há também um ensaio historiográfico sobre as contradições envolvidas na confecção de uma identidade nacional turca, sobretudo levando-se em conta o “massacre” —Pamuk não diz “genocídio“, ao menos não na tradução —perpetrado contra as populações armênia, grega e curda.

Outra forma de ler o romance é como uma imitação de um conto de fadas sobre uma princesa otomana prisioneira, que escreve cartas sem fim à irmã, dando notícias de uma região fictícia —uma ilha no mediterrâneo chamada Mingheria— da qual se torna rainha e de onde em seguida é exilada, passando o resto da sua vida a sonhar com o seu retorno à pátria de adoção.

Associado ao conto de fadas, há ainda um caso policial sobre o assassinato misterioso de um médico enviado à ilha para combater a peste que a assola e que, para esse fim, propõe medidas duras de quarentena e isolamento da população.

O mesmo caso dá margem a uma leitura alegórica a propósito dos usos políticos das pestes que atingiram as civilizações, confrontando-se diversas etnias, religiões e ideologias, com destaque para o posicionamento das populações cristãs e muçulmanas, nas quais as últimas demonstram maior resistência diante das prescrições científicas e higienistas.

Tal conto de fadas étnico-político-policial também tem uma faceta metalinguística e intertextual, pois a chave do mistério implica na leitura de “O Conde de Monte Cristo”, de Alexandre Dumas.

Por fim, esse conjunto entranhado de relatos admite uma leitura pessoal, e até auto ficcional, já que diz respeito às agruras de um autor turco contemporâneo —como é o caso do próprio Pamuk— sob um governo militarista que censura a literatura e a livre expressão em nome do amor à pátria, além de manipular a paranoia da traição e da delação. O “ame-o ou deixe-o” ou o “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” está aí para não nos deixar fingir de inocentes.

Feita essa apresentação sumária do livro, remeteria o leitor a duas questões chave. A primeira opõe duas ideias de justiça, a saber, aquela que é deduzida de um inquérito racional, no qual um crime é resolvido segundo o “método Sherlock Holmes“, e aquela outra ideia de justiça que estabelece um vínculo direto com a tortura dos suspeitos, arrancando-lhes a confissão mais conveniente às autoridades da ocasião, na base da violência e do terror.

Em ambos os casos, o princípio é punitivo, mas no segundo se afrouxa o nexo entre a punição e a resolução do crime.

A segunda questão chave é a mais candente, pois está posta por vários autores contemporâneos, tanto romancistas como historiadores, e diz respeito às propriedades que enlaçam a investigação histórica e a prosa de ficção. É, por exemplo, uma questão que está também em outro catatau, o último romance de Salman Rushdie, “Cidade da Vitória”.

Ambos são livros demasiado grandes e baseados no mesmo recurso: o da reescritura de um conjunto de textos de época, supostamente produzidos por uma personagem dos próprios eventos. E isto, acrescento, no âmbito de uma história de longa duração, na qual é central o confronto entre Oriente e Ocidente.

É justamente o que Pamuk escreve já na primeira e decisiva linha do seu romance: “Este é tanto um romance histórico como a história contada em forma de romance.”

Os gêneros parecem intercambiáveis, mas o pressuposto de Pamuk, como o de Rushdie ou o de Laurent Binet, parece ser o de que a literatura é melhor historiadora do que a historiografia.



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