Revolucionário, Dalton Trevisan confrontou caretice curitibana desde a juventude


Um gigante na construção de narrativas breves e considerado um dos principais contistas brasileiros de todos os tempos, o escritor Dalton Trevisan morreu na noite desta segunda-feira, em Curitiba, onde nasceu. Tinha 99 anos.

Estava em sua residência no centro da capital paranaense. A causa da morte não foi divulgada, e não constava que estivesse doente. Ao contrário, continuava trabalhando, e sua extensa obra —com mais de 50 títulos publicados ao longo de quase 80 anos— acabou de mudar de editora.

Depois de décadas na editora Record, os livros de Trevisan, como anunciado em novembro passado, passarão a sair pela editora Todavia no ano que vem, coincidindo com o centenário do escritor.

Na ocasião, a agente de Trevisan, Fabiana Faversani, contou ao jornal Plural que o autor estava revendo contos para as novas edições —mantendo viva até o fim a obsessão que era uma das marcas do seu trabalho.

“Ele está compulsivamente refazendo as emendas desde que começamos a negociar a mudança de editora. Só do conto ‘Noite’, foram quatro ou cinco alterações na última semana. Presentinho para bons leitores-detetives”, comentou.

Dalton Jerson Trevisan nasceu em 14 de junho de 1925, numa família de classe média alta. O pai dele era proprietário de uma fábrica de vidros e louças, onde Trevisan —formado em direito pela Universidade Federal do Paraná, mas que pouco exerceria a profissão— trabalhou. Também foi repórter e crítico de cinema.

Publicou seu primeiro livro, “Sonata ao Luar”, em 1945, mas o renegaria por quase toda a vida, assim como seu segundo título, “Sete Anos de Pastor”, de 1948. Numa reviravolta típica do personagem surpreendente que era, reeditou no ano passado “Sonata ao Luar” numa plaquete, ou edição artesanal. Além da vasta produção comercial, costumava publicar títulos em pequenas tiragens independentes, que distribuía a amigos sortudos.

Em 1946, foi um dos fundadores da revista modernista Joaquim, que circulou até 1948, teve colaboração de nomes como Drummond, Mário de Andrade e Antonio Candido —referências de juventude com as quais ele se correspondia— e causou rebuliço na sociedade curitibana por seu vanguardismo e iconoclastia.

A Joaquim caçoava do beletrismo bacharelesco da cultura provinciana da cidade e se contrapunha ao paranismo, movimento surgido nos anos 1920 em busca de uma identidade própria diante da influência do eixo Rio-São Paulo.

O título que marcou sua estreia no circuito comercial foi “Novelas Nada Exemplares”, de 1959. É tido como um dos seus maiores livros.

Dalton Trevisan revigorou o universo urbano na literatura brasileira a partir de suas referências curitibanas. Sua obra é povoada por disfunções familiares, conflitos amorosos, traições, violências, taras e fetiches, em que sexo e crime são a matéria principal ou estão sempre à espreita nas tramas.

Tão ou mais importante foi sua revolução estética, marcada por uma concisão de escultor e por um léxico próprio, repleto de neologismos, diminutivos e chistes ortográficos mil. Criava, por exemplo, metáforas a um só tempo meigas e cafajestes para designar as partes íntimas —o pênis se transmutava em “flauta de mel” ou “ferrão de fogo”; o clitóris, em “pérola da concha bivalve”.

Era também um dos autores mais reclusos da literatura brasileira. Recusava entrevistas, deplorava eventos literários e exposição em geral. Mas, como testemunharam vários de seus amigos e interlocutores, era um ser solar, divertido e amoroso, que adorava flanar anônimo, com boné na cabeça, pelas ruas de sua cidade.

A reclusão contribuiu para que ele fosse apelidado de “Vampiro de Curitiba”, nome do seu livro de 1965, que reúne 15 contos protagonizados por Nelsinho, espécie de pervertido sexual obcecado sobretudo por virgens.

Quando Trevisan completou 90 anos, um repórter deste jornal o abordou em Curitiba, uma de muitas tentativas infrutíferas empreendidas pelos jornalistas.

“Dalton Trevisan, com licença.” Sem parar de andar, o escritor respondeu “não sou Dalton”. Era ele sim, e ouviu um pedido de entrevista. “Me deixe em paz. Não faço aniversário. E não falo. Está mais do que dito que eu não quero falar de nada”, afirmou.

Foi casado por mais de 40 anos com Yole Maria Bonato Trevisan, com quem teve duas filhas, Isabel e Rosana. As três já morreram.

O vampiro sai de cena quatro anos depois de outros dois mestres do conto brasileiro, Rubem Fonseca e Sérgio Sant’Anna.

Dalton Trevisan venceu os principais prêmios literários brasileiros, além do Camões, pelo conjunto da obra, concedido pelos governos de Portugal e Brasil. Nunca apareceu para recebê-los.



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