Vitor Ramil transpõe fazer poético de Paulo Leminski para o seu novo álbum


Nos anos 1980, o poeta curitibano Paulo Leminski publicou um texto, quase manifesto, intitulado “Poesia: Morreu a Literatura, Viva a Música Popular!”. Nele, o autor dizia que a circulação de poemas se restringira à leitura de meia dúzia de pessoas e defendia que tal forma literária só atingiria a sua potência atada à música, arte representativa da identidade nacional. Ressaltava, ainda, a maneira como a canção, aliada às cadeias rádio e TV, poderia chegar a um público mais abrangente.

Ao lançar agora o disco “Mantra Concreto”, Vitor Ramil concretiza o pensamento elaborado naquele texto. Durante os anos pandêmicos, o cantor e compositor gaúcho passou a musicar os poemas de Leminski, transformando o isolamento em surto criativo. Nas últimas semanas, o álbum tem dominado as rodinhas de poesia. “A obra do Leminski tem uma comunicabilidade instantânea”, diz Ramil, por videochamada.

Por ironia, o autor de “Caprichos & Relaxos“, de 1983, e “Distraídos Venceremos“, de 1987, não precisava da música para despertar o interesse do leitorado. Em 2013, a publicação de sua poesia completa provocou um fenômeno comercial no mercado literário, algo raro para um livro do gênero. Contribuíram para isso a preferência do autor pela forma breve, o emprego da linguagem coloquial e a redescoberta de sua personalidade exuberante: faixa preta de judô, Leminski era trotskista, zen-budista e falava 14 línguas.

Entre a poesia concreta e a geração marginal, encontrou uma dicção direita. Espelhando o pensamento do poeta, a capa de “Mantra Concreto” indica que os poemas devem ter a capacidade de interpelar o leitor. Ramil recriou um famoso cartaz, criado nos anos 1920 pelos vanguardistas russos Alexander Rodchenko e Vladimir Maiakovski. “É um exemplo de sofisticação gráfica, que traduz o espírito do disco”, afirma o compositor. As inflexões da fala, transformadas em canto, inserem uma nova camada semântica às letras.

Mas, em “De Repente”, a faixa de abertura do disco, há o predomínio da interrupção de um discurso. “Já disse de nós./ Já disse de mim./ Já disse do mundo./ Já disse agora,/ eu que já disse nunca./ Todo mundo sabe,/ eu já disse muito.” Os complementos do verbo dizer, tantas vezes repetidos, não expressam nada. O eu lírico fala de si e se estende ao mundo, sem encontrar sentido ao enunciado. Na coda, se ouve a voz do próprio poeta, numa gravação em que faz elogios à música.

A faixa sonora apresenta uma cisão, com a entrada tonitruante da bateria, cujo acento rítmico imprime tragicidade à inexpressão. A fala represada jorra, contudo, em “Administério”. “Nem haja susto no mundo/ Que me possa sustentar”. Ao entoar a palavra “sustentar” alongando a última sílaba, o artista confirma a significação dos versos, como se o canto se soltasse do poema, e a palavra se soltasse no ar. Por isso, o refrão é cantado em falsete, o que deixa a impressão de uma queda livre dos versos, estrofe após estrofe.

Já em “Um Bom Poema”, Leminski mostra ser aquele equilibrista ou o samurai malandro, como escreveu a crítica literária Leyla Perrone-Moisés em um ensaio. “Um bom poema/ leva anos/ cinco jogando bola/ mais cinco estudando sânscrito/ sete levando porrada.”

O compositor de canções também precisa se equilibrar entre o som e o sentido, o que Ramil tira de letra. “Poemas eu musico rapidamente, porque, quando eu componho uma canção, eu faço a música e, depois, a letra. Demoro muito escrevendo”, conta.

Nascido em Pelotas (ou Satolep, o anagrama que sempre usa em seu trabalho), o artista cresceu com a música. Seus irmãos mais velhos formam a dupla Kleiton e Kledir. Ramil é o criador da Estética do Frio, um movimento desencadeado pelo álbum “Ramilonga“, de 1997, e por uma conferência, apresentada na Suíça, que se tornou livro.

Todo o seu trabalho é orientado por essa estética, que busca o despojamento dos estereótipos do Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo que reconhece que a realidade gaúcha nada tem a ver com a tropicalidade brasileira, o artista reivindica a integração do estado ao resto do país.

“O Brasil, com as enchentes, viu o Rio Grande do Sul, um lugar que é habitado por negros e pobres, um lugar como todo o país”, afirma Ramil. Sua musicalidade abarca gêneros platinos, como a milonga, e, no lugar do violão de nylon, o compositor prefere dedilhar cordas de aço.

Também se caracteriza por um veio experimental, representado, em “Mantra Concreto”, pela incorporação de sons de gotas de absinto e de uma máquina de escrever. Entre os seus principais discos, estão “Délibáb“, de 2010, e “Campos Neutrais“, lançado sete anos depois. Ramil publicou os livros “Pequod” (1999) e “A Primavera da Pontuação” (2014).

Suas canções entraram para o repertório dos principais intérpretes do país. “Estrela, Estrela” foi gravada por Gal Costa e Milton Nascimento, uma de suas principais referências vocais. Ney Matogrosso já gravou “Invento” e “Astronauta Lírico”. Há dois anos, Ramil lançou o álbum “Avenida Angélica”, realizado a partir de poemas de sua conterrânea, Angélica Freitas.

“Eu tenho o maior prazer, por exemplo, de cantar a palavra ‘ovomaltine’ num refrão, porque a força da Angélica vem muito dessa simplicidade”, afirma o compositor.

É comum que poemas, quando musicados, causem ruídos, com um vocabulário diferente daquele usado nos hits radiofônicos. Ramil se interessa também por esse ruído. “O que eu quero com a Estética do Frio é fazer com que a minha obra seja vista como brasileira”, diz ele. “Eu sentia angústia por não fazer um samba.”



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