China tenta retomar diálogo cultural com Ocidente com montagem de ‘Hamlet’


No momento em que China e Reino Unido buscam se reaproximar, com visitas de autoridades de lado a lado, o Centro Nacional de Artes Cênicas, principal conjunto de teatros de Pequim, programou o “Hamlet de Zhu Shengao”, visto no último dia 26.

Com cenário remetendo aos castelos europeus de um lado e aos arcos redondos da arquitetura do rio Yangtsé do outro, o espetáculo encena a tradução considerada canônica de Zhu para a peça de Shakespeare e também a trajetória heroica do próprio tradutor.

“Eu o considero um bravo guerreiro, que lutou com sua pena”, diz a diretora Chen Xinyi, 87. Zhu Shengao morreu aos 32, de tuberculose, no final da Guerra de Resistência contra a Agressão Japonesa, parte daquilo que o Ocidente chama de Segunda Guerra Mundial.

Entre 1936, às vésperas da Batalha de Xangai, onde morava, e 1944, quando morre, ele traduziu 31 peças e meia das 37 do First Folio, a primeira edição reunida das obras do dramaturgo inglês. Nos bombardeios e invasões, seus manuscritos foram destruídos duas vezes, três no caso de “Hamlet”, obrigando-o a recomeçar.

Na montagem de Chen, de tempos em tempos, ouvem-se as bombas japonesas ao fundo. Encenadora histórica de mais de 120 peças, chamada de madrinha do teatro chinês contemporâneo, ela conta que tinha cinco anos quando Zhu traduziu “Hamlet” e as bombas caíram.

No início, no final e ao longo da apresentação, acrescentou cenas com o tradutor como personagem, ao lado de sua mulher e ex-colega de universidade, Song Qingru –interpretados pelos mesmos atores de Hamlet e Ofélia, Zhao Ling e Wang Wenjie.

Segundo a diretora, trata-se do melhor tradutor de Shakespeare para o chinês, “seu ritmo poético é especialmente belo e profundo e também fácil de interpretar”. Conta que ouviu do filho de Zhu que ele traduzia os versos enquanto representava as passagens para Song, com ajuda dela, daí a linguagem acessível para os atores.

Suas traduções se tornaram canônicas no país a partir da edição de todas as peças em 1979, marcando o início da reabertura para o Ocidente após a Revolução Cultural.

As cenas com Zhu interpretado pelo mesmo ator de Hamlet servem, segundo a diretora, para realçar o contraste entre sua coragem e a indecisão do personagem. Contraste que acontece também entre a paixão das cartas de Zhu para Song e a violência do comportamento de Hamlet com Ofélia e com sua mãe, Gertrude.

É uma das razões, diz Chen, para os espectadores saírem do teatro dizendo ter entendido, “finalmente”, a tragédia shakespeariana —o que aconteceu, de fato, com o acompanhante do correspondente, ao final da apresentação.

Mas a plateia estava pela metade na quarta (26), o que frustrou a diretora. “Não estou acostumada”, falou, “mas quando vejo que são todos jovens, fico especialmente feliz”. Segundo ela, “Hamlet” não tem um, mas 40 temas diferentes. Não é apenas sobre o príncipe protagonista, “mas uma crítica do coração e da alma de cada pessoa”.

É a maneira como sua montagem procura abordar a tragédia, não como um texto inglês, mas universal. Ecoa o tradutor, que em uma de suas cartas para Song escreveu, sobre traduzir Shakespeare: “Eu sou muito pobre, mas eu tenho tudo”.

No prefácio às traduções, escreveu que o dramaturgo “transcende limites de tempo e espaço” e apresenta, seja qual for o personagem, “a natureza humana compartilhada por todos, sejam eles antigos ou modernos, ricos ou pobres, chineses ou estrangeiros”.

Entre outros elementos chineses introduzidos no espetáculo estão canções de “O Pavilhão Peônia”, ópera de Kunqu, uma das formas mais antigas do gênero musical do país. Com uma trama sobre amor proibido e uma jovem morta, as músicas são usadas em cenas como a da loucura de Ofélia.

“O Pavilhão Peônia”, que é quase do mesmo ano de “Hamlet”, perto de 1600, foi escrita pelo dramaturgo Tang Xianzu, que é frequentemente associado a Shakespeare. A ópera será apresentada em março no Centro Nacional de Artes Cênicas, numa sala menor.

Além de “Hamlet”, outros espetáculos com origem inglesa vêm sendo levados no Centro, como o musical “Sunset Boulevard”, de Andrew Lloyd Webber, protagonizado por Sarah Brightman, e uma adaptação chinesa de Arthur Conan Doyle, “Suspect Sherlock Holmes”.



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