Cartunista da Folha há quatro anos, Marília Marz, 33, começa a entrevista preocupada se seu gato Sonho iria atrapalhar a conversa.
Além da impaciência do animal, outro desafio surge para a gravação: uma reforma no apartamento da artista. Fica um clima tenso no ar, mas à medida que Marília começa a descrever seu processo criativo, o felino se acalma ouvindo a voz da tutora. E, para nosso alívio, apenas com o enquadramento das câmeras a bagunça desaparece.
Normalmente, a criação das charges começa às quartas-feiras. A artista faz uma ronda pelo noticiário, procura pautas que acha interessantes, checa quais já foram tratadas por colegas, e avalia se ainda há margem para explorar os assuntos.
Marília nem sempre gosta de retratar os temas políticos, prefere a temática cotidiana. Desenha a charge na sexta, mas “às vezes acontece algo muito chocante e surge uma nova ideia, mesmo que já tivesse algo pronto sobre outro assunto, prefiro me forçar a criar algo novo”, diz a cartunista.
O trabalho é publicado às 23h15 da sexta no site da Folha, e chega às mãos dos leitores da edição impressa todos os sábados.
Parte da última turma do programa “Ciências Sem Fronteiras”, criado em 2011 durante o governo Dilma e encerrado em 2017 por Temer, a desenhista conseguiu uma bolsa na Universidade de Oregon para estudar arte e quadrinhos nos EUA.
Foi lá que Marília Marz começou a fazer suas primeiras HQs. Seu TCC rendeu o livro “Indivisível”, lançado pela editora Conrad em 2022, onde fala sobre o encontro entre as culturas negra e do leste asiático no bairro da Liberdade, em São Paulo. “Esse trabalho foi o que abriu minhas portas para o meu desenho”, diz.
De volta ao Brasil, começou a trabalhar como expografista no regime CLT, com a boa e velha carteira assinada. Fora do horário de trabalho, desenhava. “Eu fazia cartum, ilustração, desenho, até que fui chamada para ser chargista da Folha”. A empolgação ao falar é tanta que não esquece de sua primeira charge no jornal. Publicada em 24 de abril de 2021, ainda na pandemia, o desenho mostra uma pessoa tatuando “sobrevivente 2020-2021” em uma faixa nas costas dentro de um coronavírus.
No trabalho do jornal, fica feliz ao ver seu trabalho fomentar discussões e debates. “Quando uma charge tem repercussão, seja ela boa ou negativa, mostra que o desenho não é só um desenho. Ele tem um significado muito além daquilo”, diz.
Os trabalhos como ilustradora começaram a aparecer cada vez mais. Até que percebeu que poderia se sustentar apenas com seu desenho. Receosa por abandonar a “vida de CLT”, se preparou e juntou “uma grana para tentar fazer essa mudança de vida”. Há três anos vive apenas do desenho, como autônoma.
Nesse período, o Indivisível, seu “quadrinho-TCC”, foi aprovado no edital do PNLD, o Plano Nacional do Livro Didático, e, por meio do Ministério da Educação, foi distribuído nas escolas públicas. “Memória, negritude e cultura negra em São Paulo não eram assuntos que eu sabia que existiam quando eu estava na escola. Agora, as crianças de dez anos estão lendo sobre isso”, afirma.
“Fico feliz sempre que eu vou dar oficina ou palestra em alguma escola. Vejo que meu trabalho tem espaço ali”, diz. Junto a isso, acha importante mostrar que o desenho também é profissão —”não tão linear quanto outras, mas é importante mostrar que esse universo existe e você pode fazer parte dele.”
Descreve o início da carreira de artista como “nebuloso” e diz ser difícil fazer desenhos para si e os encaixa nas “brechas da vida”. Existe um “tempo do trabalho autoral” e o tempo do “trabalho que paga as contas. É difícil de administrar”
Como parte da série, a Folha entrevistou João Montanaro e questionou se se considerava artista. A pergunta a deixou um pouco nervosa. Não tinha certeza se saberia respondê-la. É ilustradora, cartunista e artista, mas ainda está longe de ser a artista que almeja. “Ainda tem muita coisa que passa pela minha cabeça que eu poderia desenhar. Em algum momento eu vou conseguir tirar tudo isso da cabeça e me identificar mais como artista.”
Traços é uma série quinzenal que mostra os cartunistas por trás das charges e tirinhas da Folha, e seus processos criativos.