Com um bebê loiro em um dos braços, a influenciadora Hannah Neeleman —também branca, loira e de olhos azuis— quebra ovos em uma batedeira Kitchen Aid amarela. Segue-se uma receita de barrinhas de arroz, feita em panelinhas do mesmo tom de amarelo da batedeira de R$ 2.700 e sob os olhos atentos e mãozinhas ágeis de mais três crianças. O vídeo publicado no Instagram já ultrapassa 280 mil curtidas.
A influenciadora de 34 anos é bailarina de formação, com bacharelado em dança pela faculdade Julliard, em Nova York, uma das mais importantes do mundo. No último ano de graduação ela já estava casada e grávida do marido, o herdeiro Daniel Neeleman, com quem hoje tem oito filhos.
O casal vive numa fazenda em Utah, estado americano famoso pela forte presença da comunidade mórmon, da qual Hannah e Daniel fazem parte. Os filhos do casal recebem educação domiciliar e são presença frequente, e de tom angelical, nos vídeos que a dona de casa compartilha na rede social para os seus mais de 10 milhões de seguidores sob o vulgo @ballerinafarm.
No cenário idílico da fazenda —e longe do suor e dos baldes plásticos usados em faxinadas mundanas— ela prepara do zero alimentos como mostarda, manteiga, iogurte e pão, além de cuidar do gado e recolher ovos da granja.
Segundo Eviane Leidig, autora de “The Women of the Far Right: Social Media Influencers and Online Radicalization” (As mulheres da extrema direita: influenciadores das redes sociais e radicalização online, em português), este é o tipo de tendência que “posiciona o trabalho doméstico como um espaço de felicidade e tranquilidade”.
E Neeleman não está sozinha nesse projeto. Outras influenciadoras carregadas de seguidores usam seus perfis no Instagram e TikTok para promover —com uma boa dose de glamour— a vida como donas de casa. Elas são chamadas de “tradwives”, ou “esposas tradicionais”. Segundo pesquisadores, por mais que as imagens produzidas por essas mulheres pareçam apolíticas, são formas sutis de promover valores como a maternidade e a ideia de que esposas devem se ocupar de tarefas domésticas.
A ex-modelo Nara Smith, que acumula ao menos 4,5 milhões de seguidores no Instagram, ganhou espaço com seus vídeos em que cozinha vestindo roupas de grife, por exemplo. Em um deles, usando um vestido branco decotado, com unhas feitas à perfeição e cabelo irretocável, ela faz um sanduíche que envolve a confecção do pão e do chimichurri, além da fritura de um bife alto.
“Meu marido vai viajar com os amigos e eu obviamente não poderia deixá-lo ir com fome”, diz ela, aos sussurros, na narração do vídeo. Assim como Neeleman, ela também é mórmon, grupo religioso associado não só a uma visão conservadora dos papéis de gênero, mas a todo um estilo de vida próximo ao dos pioneiros americanos, cercado de fé e trabalho.
A tendência das “tradwives” já cruzou o Atlântico. Perfis como de Victoria Maria Maciel, com 55 mil seguidores no Instagram, abrasileiram a ideia trocando a religião mórmon pelo catolicismo e incluindo brigadeiros em postagens que dizem “mulheres, sejam doces”.
Por aqui, a abordagem é um pouco mais pé no chão e inclui uma ocasional passada de pano no chão da casa ou um ciclo de roupas na máquina de lavar.
O estilo de vida dessas influenciadoras, principalmente Neeleman, chamou a atenção de veículos como o New York Times e a revista Evie, publicação feminina conservadora.
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Enquanto o jornal nova-iorquino explora as raízes do sucesso econômico da influenciadora —que, junto do marido, administra uma fazenda com mais de US$ 400 mil investidos—, a revista vende como um sonho a vida de dona de casa.
Em um vídeo para promover a capa da Evie que protagoniza, Neeleman corre atrás de gansos usando um vestido românico lilás, longo e em camadas, além de botas de cowboy. Ela personifica, segundo o título da reportagem, o “novo sonho americano”.
Para Leidig, é um mito nostálgico. “São pessoas que dizem que a vida era mais simples antigamente, mas só era assim se você tivesse os meios econômicos de alcançar isso”, diz.
Devin Proctor, professor de antropologia na Universidade Elon e estudioso de comunidades digitais de ultradireita, faz eco à leitura. “Elas ignoram que esse passado foi opressor para pessoas que não eram brancas. A ideia que os Estados Unidos dos anos 1950 eram perfeitos, idílicos e pacíficos é um mito que só vale para parte da classe média alta branca.”
A crença é relacionada também ao mote nacionalista evocado pelo slogan “make America great again”, do presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Essas influenciadoras, porém, vendem de forma indireta o conservadorismo do movimento, sem precisar mencionar o nome de Trump.
Segundo Leidig, a imagem reproduzida pelas influenciadoras gira em torno de papéis “heteronormativos estritos” vistos em casamentos entre homens e mulheres, em que ela fica responsável pela casa enquanto ele trabalha fora. “Há também um desejo por filhos biológicos.”
Há, para Proctor, misoginia e racismo implícitos nessa tendência, que partem da valorização de um passado perfeito —que era, na realidade, recheado de desigualdade e opressão.
Os pesquisadores explicam que a maior parte das influenciadoras sob o guarda-chuva de esposas tradicionais não são —de forma explícita— supremacistas brancas. Mas são movimentos que se sobrepõem e chegam a ter representantes comuns.
É o caso da ex-blogueira Ayla Stewart, vulgo “Wife with a Purpose”, ou esposa com propósito. Em 2017, ela lançou na internet o “desafio do bebê branco”, em que convocava seus seguidores brancos a procriar. Em uma selfie de 2019, ela usou as hashtags “Maga”, em alusão ao slogan de Trump, além de “restoration” (restauração, em português) e “nacionalism” (nacionalismo, em português). Em seu site, ela inclui imagens com a hashtag “whiteculture”, ou cultura branca.
Leidig afirma que as origens da comunidade “tradwife” têm conexões diretas com grupos supremacistas brancos e redes racistas. “São comunidades online que se sobrepõem porque tanto supremacistas quanto as “tradwives” valorizam ideias em comum sobre hierarquias de gênero.” A autora diz que a tendência se originou por volta de 2015 e se deu principalmente em fóruns e chats online de grupos redpill —movimento conspiracionista e masculinista da ultradireita— e supremacistas.
Existem ainda influenciadoras que são mais vocais sobre política, caso de Estee Williams. Com cabelos loiros arrumados em penteados à la anos 1950 combinados com aventais de cozinha, a influencer fez campanha para Trump em suas redes, onde também advoga contra o aborto. Mas ela se distancia do discurso racista quando diz que existem “‘tradwives’ de todas as cores ao redor do mundo”.
Williams é uma das várias que criticam abertamente o feminismo. Para ela, o feminismo falha em não reconhecer que, no fim, ela e outras mulheres que escolhem ser donas de casa estão tomando decisões por conta própria.
Para Leidig, é um refluxo de certa frustração com a figura da “girlboss” —mulheres que equilibravam na mesma bandeja uma vida profissional ambiciosa, um casamento bem-sucedido e a maternidade.
A autora diz que a linguagem sutil adotada pelas “tradwives” para promover esse estilo de vida é um movimento estratégico. Mas os chamados “dog whistles”, mensagens cifradas de carga política direcionadas a pessoas com os mesmos ideais, ainda aparecem.
É o caso dos acenos a movimentos antivacina e à indústria de bem-estar. A fundadora da revista conservadora Evie advoga pelo leite não pasteurizado em seu Instagram, numa releitura da campanha “got milk?”, criada nos anos 1990 para aumentar o consumo de leite nos EUA.
O leite não pasteurizado é uma das bandeiras de Robert Kennedy Jr., secretário de saúde do governo Trump, que também se posiciona contra a obrigatoriedade de vacinação e a presença de flúor na água.
“Narrativas de maternalismo se tornam armas na comunidade “tradwife” como se elas estivessem protegendo seus filhos da indústria de alimentos ou da indústria farmacêutica”, diz Leidig. É um clima de desconfiança em que os consensos científicos correm risco de ser esmagados.
Para Leidig, são figuras perigosas, não só para mulheres que podem se inspirar a entrar em relações de submissão, mas para homens que consomem esse conteúdo –e, assim, acham que todas devem ser belas, recatadas e do lar.