'Ainda Estou Aqui' é mais um sintoma de um cinema carente – 17/02/2025 – Ilustrada


Ainda Estou Aqui” é um inegável fenômeno de público e crítica, abraçado incondicionalmente pelos brasileiros. As indicações em premiações hollywoodianas se tornaram sinais de que o cinema brasileiro, se adequado ao gosto do drama vendável (dito “universal”), pode ser aceito pelo “melhor do cinema”.

Mais ainda, uma promessa de futuro se os cineastas brasileiros seguirem seu exemplo. Por isso essa aceitação cega e torcida de futebol apaixonada: “Ainda Estou Aqui” no Oscar não é só um filme, é a salvação da pátria.

O filme de Walter Salles segue um tipo de filme para exportação: competência técnica e capacidade de articular a linguagem cinematográfica para produzir efeitos de emoção, sem agredir ou tensionar questões locais.

Sua ênfase está na narrativa íntima, na memória, nas relações pessoais em detrimento da história e da realidade social, mesmo que isso esteja presente como pano de fundo difuso. É uma reedição do drama convencional com cara de Oscar, apostando na reconstituição verossimilhante dos cenários, a centralidade do roteiro em detrimento da imaginação visual, a emoção personalista vinculada ao elenco de estrelas.

Isso seria o filme de caráter “universal”, em oposição ao ancorado no território, com marcas locais e, principalmente, com algo a dizer do ponto de vista da arte e da política. “Ainda Estou Aqui” é um caso bem-sucedido de “cinéma brésilien de qualité”, em referência aos filmes que dominavam a produção francesa nos anos 1950: rico em produção, pobre de ideias.

Porém, é importante marcar que o cinema brasileiro vinha por outra vereda. Nas últimas duas décadas, a produção, antes concentrada no Rio e em São Paulo, se nacionalizou e surgiram cineastas de projeção internacional, como Kleber Mendonça Filho, Karim Aïnouz, Gabriel Mascaro, com propostas de produção mais despojadas e arriscadas do ponto de vista da linguagem. Um cinema com frescor artístico e atento à realidade brasileira, como “O Som ao Redor“, “Boi Neon“, “Bacurau“, “Marte Um“. “Ainda Estou Aqui”, para além dos efeitos imediatos, é um passo atrás.

Alguém pode argumentar que o mesmo vale para “Central do Brasil“, mas no contexto de reconstrução do cinema brasileiro da época, o filme de Salles apontou uma possibilidade de sedução do público, tanto aqui quanto no exterior. Além disso, a trajetória de Dora promovia um encontro entre o Brasil urbano e o interior, pagando tributo à história do cinema brasileiro e à realidade social.

A força do filme vem do encontro dos contrastes, da mulher cosmopolita entrando na velhice com o menino analfabeto, abandonado à própria sorte, o choque de duas vivências antagônicas. Salles conseguiu sintetizar o encontro dos diferentes Brasis em imagens fortes, como a foto na quermesse, a visualidade das casas populares ou simplesmente o ritmo dos gestos de Fernanda Montenegro. A emoção vem de dentro da ficção.

Em “Ainda Estou Aqui” acontece o oposto. A narrativa se concentra e se encerra em Eunice, em quem a emoção também se concentra. Utiliza chavões visuais como “personagem introspectiva boiando na água” ou a textura da película em super-8 para marcar a passagem de tempo. Usa o diálogo para dar informações diretas para o espectador e a música para pontuar o instante exato que o público deve se emocionar.

A realidade política é só um detalhe na trama —o que suscitou os poucos questionamentos ao filme até agora. Não promove um acerto de contas com a ditadura nem pontua sua herança hoje. Ela serve apenas como pano de fundo para dar um gosto de realidade a esse grande teatro sofisticado que busca envolver os espectadores pela identificação com os atores, sem grandes momentos visuais para além da reconstituição de época.

Os elementos estéticos dão carga dramática à presença de Eunice apesar do drama sem contrastes, choques ou reflexões políticas. Se “Ainda Estou Aqui” não é um filme simplório, está na conta da simpatia do elenco.

O problema de “Ainda Estou Aqui”, então, não é a ditadura e seu retrato. Se ele é rico em produção e pobre de ideias é porque Salles não consegue construir um mundo ficcional que diga algo para nossa realidade além da encenação do texto pelos atores.

A emoção vem de fora para dentro, da linguagem, forçando a ficção. Isso tem sido tomado como “universal”. Na verdade, é genérico, um exercício estético que poderia ser sobre qualquer pessoa em qualquer outro contexto. Ao contrário do que acredita a torcida de prêmios, “Ainda Estou Aqui” é muito mais um sintoma da nossa carência em matéria de cinema do que uma grande arte.



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