Com ‘Das Licht’, festival de Berlim traz luz misteriosa no lugar dos anjos de Wenders


“O Céu sobre Berlim” é o nome em alemão de “Asas do Desejo“, de Wim Wenders. Talvez o título original soasse local demais para ouvidos brasileiros ou muito literal.

No filme de 1987, “o último memorável de Wenders” como já descreveu esta Folha, anjos sobrevoam a cidade até o ponto de um deles querer deixar de ser anjo. Ele se apaixona por uma trapezista que vive lá embaixo, talvez o “desejo” do título nacional.

“Das Licht”, filme que abre nesta semana o Festival de Berlim, tem outras pretensões, mas também começa sobrevoando a capital alemã. O que chama a atenção não é mais o cotidiano dos moradores, escrutinados pelos seres com asas, mas uma luz que pisca insistentemente em uma das janelas. É a luz do título, vinda de uma lâmpada de hipnose ou terapia, que conforta almas atormentadas.

Nessa Berlim atual e colorida, muito diferente da Berlim Ocidental fotografada em preto e branco por Henri Alekan para Wenders, os anjos não voam mais. Constituem “uma típica família disfuncional alemã”, na descrição da filha. São os Engels, anjos, sutileza que só funciona em alemão, apresentados um a um com suas respectivas disfuncionalidades.

O filme de Tom Tykwer, diretor de “Corra, Lola, Corra“, tem essa característica, delinea excessivamente os personagens. Suas crises e consequentes epifanias, desdobradas em clipes com narrativas estéticas distintas, consomem o tempo, nos 242 minutos de duração, e a história, que não é muito complicada.

Os Engels se descobrem alienados e egoístas ao mesmo tempo que contratam Farrah, uma imigrante síria, como empregada. É ela quem conduz a terapia de luz, a mesma que usa para se comunicar com a sua própria família. Os Engels vão precisar cada vez mais de Farrah, mas também ela deles mais tarde.

A questão imigratória aparece também em uma segunda camada. A mãe da família Engels trabalha em um projeto que tenta construir uma instalação social em Nairobi, no Quênia. De lá, ela traz a culpa de não conseguir viabilizar a empreitada e um terceiro filho.

Todos se sentem culpados de não perceber a humanidade do outro, principalmente de quem é diferente e limpa o banheiro. “Eu ajudo uma família a se reunir novamente por meio de uma pessoa estranha a elas. Porque acho que esse é o movimento necessário”, disse Tykwer em entrevista à imprensa alemã. “Precisamos aprender a superar esse medo do estranho. E aprenderemos isso ao ouvir e nos aproximar uns dos outros.”

A alegoria da família como o país que vive em conflito com seus imigrantes funciona, mas só até certo ponto. Já a da luz, como meio material de superação, que Farrah controla com um aplicativo de celular, parece mais um dos escapismos tecnológicos que o próprio filme condena entre os tantos excessos que atrapalham as relações pessoais. Faz falta o caráter onírico, tão bem sugerido pela luz do filme de Wenders, mas talvez isso não seja mais plausível.

Berlim, “a cidade mais cinematográfica que existe”, na definição do Tykwer, sempre inacabada e sempre em construção, sofre com limitação semelhante ao ser filmada sob uma chuva torrencial cênica que permeia boa parte da narrativa de “Das Licht”.

Mostrá-la às vezes cinza, às vezes verde, como normalmente é, teria sido uma opção menos literal.



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