Interpretar é viver ou morrer, diz Fernanda Montenegro, com novo filme


O Theatro Municipal de São Paulo é um velho conhecido de Fernanda Montenegro. A dama da dramaturgia brasileira conta, afinal, 80 anos de vida no palco. Mas quando ela subiu no tablado mais simbólico da cidade, na noite desta segunda-feira, foi para apresentar “Vitória“, filme que protagoniza aos 95 anos. “Posso até continuar a fazer as minhas leituras. Mas cinema pede físico e fôlego”, disse ela, diante de uma plateia lotada.

É regra que as aparições da atriz atraem multidões, como foi a leitura que ela fez no paulistano parque Ibirapuera, no ano passado, e na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janieor, nesta terça. A admiração, porém, não diminui o risco em cena, reforça Fernanda, em entrevista. “Tudo pode dar certo como pode dar errado na vida em cena. O ator ou atriz, interpretando seres humanos, corre, na pele, o mesmo risco. Mas, às vezes, há sobrevivência. Às vezes. Nada é mais humano do que o meu ofício.”

Além de sua presença, o burburinho causado por “Vitória” é fruto de um momento simbólico, após “Ainda Estou Aqui” ter faturado o primeiro Oscar para o Brasil.

Em “Vitória”, dirigido pelo seu genro, Andrucha Waddington, Fernanda dá vida a Joana da Paz, pivô de um caso que foi manchete em todo o país em 2005. A idosa filmou a venda de drogas na ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, e foi responsável pelo início de uma investigação que culminou na prisão de traficantes e policiais militares envolvidos com o crime organizado.

“Interpretar um personagem é viver ou morrer. Ainda mais diante de uma história real. Joana da Paz é uma heroína. Uma mulher extraordinária. Como dar conta?”, pergunta a atriz. Ela preenche com a sua presença as quase duas horas de duração do filme, diferente de “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, ou mesmo “Ainda Estou Aqui”, em que aparece nos minutos finais para uma performance arrebatadora.

Notar esse tempo de tela hoje pode parecer desimportante, dada a extensa carreira de Fernanda Montenegro, mas fato é que ela não aparecia no cinema dessa forma havia pelo menos dez anos, quando viveu Dona Mocinha, em “Infância”, de Domingos de Oliveira.

A matriarca rígida que controlava com rédea curta a família abastada em nada se parece com a solitária Nina, como Joana foi batizada no filme, que compra uma filmadora abastecida por fitas para flagrar traficantes de sua janela.

Na vida real, depois que reuniu as provas e fez a denuncia, Joana entrou para o programa de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, e ganhou o codinome Vitória. Ela saiu do Rio de Janeiro, e sua identidade não foi revelada até a sua morte, em 2023.

No ano em que a história saiu na imprensa, Waddington, o diretor, procurou Fábio Gusmão, jornalista que ajudou Joana a fazer a denúncia e publicou a primeira matéria sobre o caso. O cineasta queria levar a jornada para as telonas, mesmo que isso tardasse anos.

Isso porque a identidade de Joana, claro, não podia ser revelada. O tempo passou, e o projeto foi para as mãos do diretor Breno Silveira. O amigo de Andrucha Waddington, porém, morreu em 2022, por um infarto, e Waddington, então, retomou as filmagens já iniciadas.

O anonimato imposto pelo programa de proteção irritava Joana da Paz, conta Fábio Gusmão, o repórter, por telefone. Ela chegou a abandonar o sistema para viajar à Itália e, quando retornou ao Brasil e voltou a ser uma protegida, burlava as regras para falar com o jornalista. “Ela tinha muitas camadas. Era combativa, enérgica e brava, mas tinha compaixão e alegria, gostava muito de dançar.”

A contradição, inerente a qualquer personalidade, é transmitida com maestria por Fernanda Montenegro, que dá vida aos trejeitos de “uma mulher porreta, resiliente, heroína improvável”, como descreve Waddington. O perfil parece contrariar de propósito o que se esperaria de um filme protagonizado por uma mulher na velhice.

No filme, Nina segue desconfiada a vizinha, vivida por Linn da Quebrada, até um bingo clandestino e resmunga julgamentos, mas também se alegra ao receber o convite da mulher para dançar no lugar. Nina não é sofrida, e há até certo humor na forma de enfrentar a dificuldade —uma característica que Fernanda já relacionou ao jeito brasileiro de ser.

Nina também é apegada à solidão de uma vida mansa, construída com esforço, como transmite quando se dedica a colar cacos de uma xícara quebrada após o susto de um tiroteio. Sua casa de móveis de madeira antiga, porcelanas rachadas e papel de parede desbotado é um reduto de conforto num bairro de Copacabana violentado pelas contradições sociais. A paz do oásis é dissipada pelo som de tiros que fazem Fernanda se jogar no chão e se esconder dentro da banheira.

Apesar do perigo, a Joana de Fernanda, ou Nina, também não se acovarda na hora de dizer verdades a um coronel corrupto. Medo, aliás, não foi o que a verdadeira Joana sentiu quando soube que seria feito um filme. “Ela ficou eufórica e disse que queria ser interpretada por Fernanda Montenegro, porque tinha a referência de ‘Central do Brasil’”, diz Gusmão.

Na época, não fazia muito tempo que a atriz havia se tornado a primeira brasileira indicada ao Oscar. Neste ano, quase três décadas depois, a história se repetiu com sua filha, Fernanda Torres, que agora também é uma espécie de representante do cinema nacional ao lado da mãe. “Nós temos historicamente uma filmografia de alta qualidade artística”, diz Fernanda. “Se a obra acontece, sempre e sempre, teremos plateias.”

A Conspiração, produtora de “Vitória” e “Ainda Estou Aqui”, dirigida por Waddington e Claudio Torres, entre outros sócios, deve receber um financiamento de R$ 32 milhões aprovado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social nesta semana.

“A indústria do audiovisual merece estar vivendo esse momento de reconhecimento e respeito, fruto de um trabalho de muitos anos”, diz Waddington. “É um ótimo momento para o audiovisual brasileiro, no Brasil e no mundo.”



Source link

Cookie policy
We use our own and third party cookies to allow us to understand how the site is used and to support our marketing campaigns.

Hot daily news right into your inbox.