O acesso de estudantes negros ao ensino superior tem sido tematizado por obras significativas da literatura brasileira contemporânea. Alguns exemplos incontornáveis são “De Onde Eles Vêm” (2024), de Jeferson Tenório, em que o ingresso dos primeiros cotistas nas universidades é central, e “O Avesso da Pele” (2020), do mesmo autor, que tem como narrador Henrique, também contemplado pelo sistema de cotas, enquanto seu pai, morto em uma ação policial, tinha se formado em uma faculdade privada.
“Marrom e Amarelo” (2019), de Paulo Scott, discute os efeitos do colorismo diante dos critérios para colocar em prática essa política afirmativa. Em “Torto Arado” (2019), Inácio, rebento de uma das irmãs que protagoniza o romance, se prepara para se tornar universitário e participar de movimentos que lutam pelos interesses daqueles que busca representar.
A combinação de enredos de ascensão pela via educacional com personagens marcados pelo recorte da raça faz emergir desses livros recorrências das quais “A Construção”, romance de estreia de Andressa Marques, não escapa —mas para somar.
O livro acompanha as descobertas de Jordana, que ouviu que seu nome tinha “um asterisco na matrícula”. A história jamais se dissocia daquelas de seus ancestrais, cada uma delas decisiva para que a caloura chegasse ali, naquele tempo e naquele lugar, na lista de aprovados por cotas raciais da Universidade de Brasília (UnB).
Filha de um pai bastante engajado nas causas negras, ela parece em um primeiro momento querer escapar dessa sina, e tem lá suas razões. Esse mesmo pai é bastante machista e esteve ausente em momentos decisivos de sua formação.
Mas essa postura, que até certo ponto sugeria uma personagem com mais nuances a ser exploradas, não dura. Jordana logo entende que mesmo suas questões mais íntimas, quiçá menos nobres, nunca estarão a salvo do racismo estrutural e de suas consequências, mesmo entre seus pares.
“Queria estudar e seguir”, afirma para si, e para nós, que a lemos, cientes de que sua jornada já não é uma exceção, mas também está muito distante de representar qualquer regra que não a do movimento (o político, o de transformação constante, e o literal deslocamento entre os diferentes espaços). “Um movimento que me alargava.”
O romance de Marques se junta a toda uma produção recente que, tendo como personagens pessoas que encarnam as mazelas vividas pelas gerações de descendente dos escravizados (as cotas estão, afinal, diretamente ligadas a essa reparação histórica), aborda também a busca por uma genealogia apagada; perseguições religiosas e conversões que embranqueceram modos de fé; a disputa de territórios rurais e a consequente migração de trabalhadores para as franjas das cidades que eles próprios ajudam a erguer desde o centro.
Jordana, neta de um migrante nordestino que morreu durante as obras de construção de Brasília e cuja família não recebeu qualquer indenização por isso, é moradora de uma cidade-satélite, de onde parte todo dia para chegar ao campus da UnB.
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“Agora eu estudava longe.” Ela nunca retorna para a casa a mesma, atenta à imposição de toda uma via sacrificial: “Às 18h30 vemos o auge da movimentação na rodoviária. Centenas de pernas fatigadas pela maratona compulsória disputam o espaço quase obrigatório para sair do do Plano [Piloto]. A regra de se deslocar a partir de uma cruz sempre me intrigou. Quem pensou nisso esticou nosso cansaço por mais algumas horas.”
Esse entendimento de si como coletivo (“Eu me sentia abarrotada como o metrô”, afirma Jordana) é outro traço —será cedo para dizer geracional?— desses livros, em que importa mais a origem e a originalidade fundamental para a sobrevivência.
“As memórias das mulheres negras não são surpreendentes. Se repetem em acontecimentos comuns a todas nós. Carregamos a mesma geografia”, escreve Lilia Guerra sobre o romance “Por Cima do Mar” (2018), de Deborah Dornellas, que também tem como protagonista-narradora uma preta nascida e criada na periferia da capital federal que se torna acadêmica. A análise também se aplica ao romance “A Construção”.