A televisão brasileira está completando 75 anos exibindo um panorama de estilos que remete ao apogeu de décadas passadas. No turbilhão teledramaturgia, vemos por todos os lados produções mexicanas, turcas, coreanas e, agora, obras nacionais direto para o streaming.
Mas se a América Latina inventou a telenovela, Silvio Santos, o maior comunicador do Brasil, foi quem escancarou as portas do país para as tramas e conflitos de outras culturas, primeiro com produções mexicanas, até então desconhecidas por aqui.
Foi o caso da exibição no SBT de “Os Ricos Também Choram”, com Verônica Castro e Rogelio Guerra, em 1982, cerca de um ano após a inauguração da emissora. A obra é um ícone da teledramaturgia mundial sob a batuta de Valentín Pimstein, um dos pais das novelas produzidas pela Televisa, o maior grupo de mídia mexicano.
Na trama, Mariana, a jovem heroína interiorana —quase “selvagem”, ao estilo de Jean-Jacques Rousseau—, aprenderá no mundo urbano, para onde é levada após a morte do pai e onde se apaixonará pelo filho de um milionário, que até os ricos choram. Mas a força do amor é redentora para com os bons e, ao final, os maus terão o castigo merecido num efeito catártico.
É quando o vilão, sedutor e orgulhoso e que pensa ter o domínio de tudo, sucumbe ante o herói. Afinal, um vilão bem construído é também central em qualquer boa história ancorada no melodrama folhetinesco. Ele é a representação dos obstáculos da vida cotidiana em forma de ficção, geralmente de comportamento egocêntrico e narcisista.
Com a novela, a emissora nascente da Vila Guilherme, em São Paulo, conquistou uma forte ligação emocional com um público receptivo a esse estilo de história onde o sentimento humano à flor da pele assume o protagonismo. Na moral da história há a reparação da injustiça e a busca da felicidade amorosa.
São temas universais, não raro com situações mirabolantes —identidades duplas, amores ardentes, noivas abandonadas— envoltas em dramas domésticos, suspense e mistério amarrados com ganchos de fácil entendimento que, ao final feliz, aliviam, pela catarse, o público que busca o mesmo na vida real.
A popularidade por aqui, porém, não coincidiu com a recepção da crítica, que preferia debochar do enredo das novelas apresentadas pelo SBT.
Há um contexto: esse maniqueísmo fundamental se somava à estética de programas sensacionalistas, como “O Homem do Sapato Branco“, ou a atração de variedades “Show sem Limite”, com J. Silvestre —ele mesmo autor de radionovelas melodramáticas—, pela maneira clara e objetiva com que abordavam arquétipos da tragédia e da comédia humana.
Uma raiz em comum interliga essa teledramaturgia —o melodrama operístico do século 17 em comunhão com os romances de folhetim, sensação do século 19. Cabe a cada autor —desde Joaquim Manuel de Macedo, pioneiro na compreensão da literatura para o povo com “A Moreninha“, até Raphael Montes, com a nova “Beleza Fatal“— o talento de repaginar o que já está alicerçado há séculos.
Por sua vez, à época de “Os Ricos Também Choram“, a concorrência seguia um caminho diferente. A Globo desfilava sucessos como “O Homem Proibido”, inspirado em Nelson Rodrigues, “Elas por Elas” e “Sétimo Sentido”, e abria espaço para as minisséries, com “Lampião e Maria Bonita”, “Avenida Paulista” e “Quem Ama não Mata”.
Obras que, de uma forma ou de outra, trabalhavam com um lastro de realidade nacional, com mais nuances que o melodrama idealizado.
Já o SBT apostava nesse gênero que já se julgava antiquado. Foi uma sequência de sucessos, que depois seriam reprisados —a venezuelana “Topázio”, com Grécia Colmenares; a trilogia das Marias —”María Mercedes“, “Marimar” e “Maria do Bairro“, com a mexicana Thalía; seguida de “A Usurpadora” e a colombiana “Café com Aroma de Mulher”.
Tramas, no geral, em que as mulheres protagonistas lutam em busca da felicidade, contra injustiças pessoais e vencem em nome do amor.
Sem esquecer dos sucessos infantis, outra marca registrada da emissora, a mexicana “Carrossel” e a argentina “Chiquititas“, que teriam remakes de suas tramas em escolas e orfanatos ao longo das décadas.
A partir do sucesso, o setor nacional do SBT resgatava uma prática que esteve na base da novela brasileira ao longo dos anos 1960, adaptando produções estrangeiras como “Destino”, a partir do original mexicano de Marissa Garrido. Com apenas 55 capítulos e ação centrada em um grupo restrito de personagens, a obra de 1982 já adotava um formato que o streaming, hoje, alardeia estar inaugurando.
Seguiram outras: “Conflito”, “Acorrentada”, “A Ponte do Amor” e “A Justiça de Deus”. Tramas que giravam em torno de amores impossíveis, injustiçados, de diferentes classes sociais; gêmeas ou de dupla personalidade; troca de crianças na maternidade; distúrbios psicológicos que intensificavam o drama familiar.
Enfim, os clássicos “faits divers” que recheavam os folhetins publicados por Émile de Girardin e Armand Dutacq desde 1836, na França.
Não demorou para que a emissora apostasse, em seguida, em produções originais que bebiam dessa tradição, a exemplo de “Meus Filhos, Minha Vida”, em 1984 —comovente atração protagonizada pela atriz Mirian Pires.
Na autoria, Crayton Sarzy —assessor de Silvio Santos na área dramática—, Henrique Lobo e Ismael Fernandes —com quem colaborei no livro “Memória da Telenovela Brasileira“. Foi um momento importante de ampliação do mercado de trabalho.
Já no início dos anos 1990, o SBT tentava correr atrás do nacionalismo. Foi quando o diretor Nilton Travesso produziu uma adaptação de “Éramos Seis“, que se tornaria um grande sucesso com Irene Ravache e Othon Bastos a partir do romance de Maria José Dupré.
Daí derivaram títulos como “As Pupilas do Senhor Reitor” e “Sangue do Meu Sangue“, bem realizadas, mas que não repetiram o mesmo sucesso do primeiro investimento no setor. “Eu falei para o Silvio que nós temos mais audiência com produções mexicanas do que com as brasileiras”, me confidenciou Sarzy à época, quando eu ainda trabalhava no Vídeo Show.
Na época, vendi para o SBT também três textos de Jorge Andrade —”Os Ossos do Barão”, “Gaivotas” e “Ninho da Serpente”. Dentro do universo de público que o próprio SBT havia descoberto, Sarzy estava certo.
Uma década depois, em 2008, atuando como consultor na Globo, aceitei um convite de Silvio para uma experiência em sua casa, no Morumbi —por dois meses, lia, fazia observações e recebia os capítulos em vídeo daquilo que seria “Revelação”, a primeira novela de Íris Abravanel, misturando elementos-chave do folhetim, conflitos amorosos, ambição e mistério.
Uma vivência valiosíssima, ainda que não tenha ido adiante porque Octávio Florisbal, diretor-geral da Globo, lembrou-me que eu tinha contrato de exclusividade com a emissora.
Na década seguinte, seria a vez da Band e da Record identificarem uma coqueluche mundial. Títulos como “Mil e Uma Noites”, “Fatmagul: A Força do Amor”, além da recente novela “Força de Mulher” —inspirada no drama japonês “Woman”— estão em crescente sucesso.
O melodrama é universal, mas as obras turcas partem de outro lugar. A base psicossocial das histórias gira em torno de mulheres oprimidas que, por esforço próprio, superam as adversidades da vida e encontram o amor romântico. Como em uma gangorra dramática, temos a mulher entre o trauma e a superação.
Tanto no México como na Turquia, o fator religioso é muito latente. Mas no caso turco, o drama amoroso é extremamente intenso, envolto por um fator moral baseado em dogmas religiosos que contrasta com a realidade dos avanços cada vez mais notórios da mulher brasileira.
No mesmo embalo, estão agora aí as novelas e séries da Coreia do Sul, que desde 2012 vêm construindo um caminho para mostrar ao mundo a qualidade de suas histórias. “Rainha das Lágrimas”, “Descendentes do Sol”, “O Rei da Porcelana” e “A Joia do Palácio” são apenas alguns dos destaques que se vê em streaming como a Netflix e o Rakuten Viki, dedicado ao gênero.
Seu diferencial é mostrar a Coreia do Sul tradicional e moderna, bebendo tanto na fonte mexicana e brasileira —muito disso por conta do sucesso do Telenovela, importante canal a cabo asiático que exibe obras de ambos os países.
Nessa toada, chegamos à China, que ainda não tem repercussão no Brasil. Mas, lá fora, pela primeira vez, em 2016, após mais de dez anos dentro da categoria telenovela, a Academia Internacional de Artes e Ciências da Televisão de Nova York elegeu uma produção chinesa como a melhor do ano para o Emmy.
“A Canção da Glória”, inspirada no romance “A Filha Venenosa”, com seu drama histórico, arrebatou a audiência com apenas 53 capítulos. Outras produções de destaque são “Aposta de Gigantes”, “A Princesa Rebelde” e “Bela Juventude”, mostrando a abertura da China a partir do desenvolvimento econômico.
Encontrar os anseios do povo, preencher os vazios existenciais e emocionais, valorizar personagens de diversas faixas etárias, promover um equilíbrio étnico e racial de forma sensata e transmitir valores morais é um desafio cada vez maior em tempos tão fragmentados como hoje.
Para embaralhar ainda mais o “jogo do faz de conta” —como diria a cronista Helena Silveira, aqui desta Folha—, só falta a gigantesca China arvorar-se e estender seus tentáculos ficcionais pelo mundo. Pois, como ensinava Mayra Sierra, minha mestra cubana de teledramaturgia latina: “Os americanos se metem com todo mundo. Menos com os chineses. Ninguém pode com os chineses.”